A que distância da língua comum deixáste o teu coração?


O amor é uma ferida escondida nos nossos livros de infância, onde aprendíamos a ler os traços da nossa pele: onde nem sequer imaginávamos o que viria a acontecer. Sei que estou quieta e presa no meu mar baço onde as minhas mãos se destroem: o dia está pesado por demais, a minha pele de heroína já não se cura tão rapidamente. Sei que te disse que iria estar sempre aqui; sei que te disse que, enquanto dormisses, te iria guardar o sono. Perdoa mas falhei. Estarei longe, ou perto - tanto faz. Estou por demais cansada, sabes? De nada me vale correr o mundo a salvar vidas, a salvar-te de algo que me iria para sempre preencher com um espaço demasiadamente branco e disforme para o conseguir compreender. Talvez o tempo tenha sido curto para te dizer tudo aquilo que as minhas mãos não conseguiram soletrar.
Sinto-me uma caneta com a tinta fresca a escorregar... a precisar escrever... a precisar soltar algo...
O tempo e o hábito são os dois grandes inimigos da vontade. Por tudo o que sentimos e queremos, algo em nós se esquece que a vida são dois dias e que temos que lutar por eles. Sem coragem para lutar aos olhos do mundo, choramos pela ausência de pensamento, crença, êxito. Não lutamos pelo que nos faz voar, não ganhamos um jogo que nem sequer jogamos ou não o fazemos com medo de o perder. Não o fazemos pela simples razão que temos dúvidas se o devemos fazer, se o queremos ou se podemos.
Nada há que eu queira devolver-te. Sei que, se fosse ontem, milhentas coisas te poderiam ser restituídas, da mesmíssima forma em que as obtive: inócuas... metálicas.
Sei que a hora já é tardia para que te consiga acordar; para que, entre a água e a lama dos meus olhos, nada mais entre a não ser o teu corpo desnudado. Já lá vão alguns dias desde a última vez em que não nos encontrámos, e de mim tenho a ténue imagem de resignação, de silêncio.
Assim te tive.
Assim é a forma como te vou lembrar, de ora em diante: ausente, quase-meu.
É como hoje, em que nada sai como seria suposto: existe calor em formas diversas, mas o corpo é uma moldura de tudo aquilo que não quiseste lembrar.
Sussurro-te, de longe, hoje: nada mais resta por aqui.
E conseguiste ouvir-me, não sei como, a dizer-te tudo aquilo que irias conhecer no futuro, e foi ontem que partiste.
De ti não vou guardar nada que não deixes.
Isto porque as coisas que tenho são minhas, neste momento. Deixaram-te, ultrapassaram-me de uma forma que não conheço e juntaram-se a outras cicatrizes que passeio, com o meu corpo.
Talvez a minha doença seja essa: não saber quando estás ou quando partiste. Não ter a certeza definida de que os teus passos ladeiam as minhas memórias.
Fiquei surpresa com a velocidade a que as memórias nascem, crescem, morrem e deixam pó nos olhos.
Talvez seja esta a forma como te tenho, hoje, mesmo que aqui não estejas desde o momento em que partiste - mas de ti resta-me apenas o teu cansaço, que uma vez consegui guardar.